Comentário

Trata-se de uma tradição perdida no tempo - como convém a qualquer tradição que se preze - celebrada pelos alunos da Escola Primária de Francelos, da Vila de Prado, embora a instalação e funcionamento das escolas primárias nas zonas rurais não seja assim tão velha e imemorial como se pretende. O que sobressai é a perseguição e cerco a um pobre galo, exemplar de eleição, comprado pelos alunos e destinado ao sacrifício supremo em casa do professor. Mas esta celebração terá um sentido mais profundo no seu ritual profano do calendário popular: na velha tradição vicentina, rindo, castigam-se os costumes, nada melhor do que aproveitar o Carnaval para, de forma brejeira, tratar de "assuntos sérios" do foro moral. Antes de dominado, o penígero é convenientemente julgado e sentenciado pelo rapaz-juiz da espada implacável, em todas as suas partes anatómicas: os adereços vistosos e as rações mais saborosas serão destinadas aos agentes do bem, enquanto as mais repugnantes são doadas aos malquistos do lugar. Depreende-se daqui um exercício de catarse da comunidade, utilizando a ingenuidade inimputável das suas crianças, numa mescla de metáforas e insinuações, de modo a garantir a continuidade moral baseada em "princípios imorredoiros". O sacrifício zoolátrico servia de máscara (não estivéssemos nós no Carnaval!) para indagar a conduta dos humanos e expurgar os seus fantasmas, num jogo de segundas intenções em que se adivinha o desespero final, o engano e a hipocrisia, a má sina, o infortúnio e a vingança praguenta. Tudo isto no meio de muita alegria, pantomima traquina e até alguma cumplicidade com os diversos feitios, uma vez que não somos nós quem escolhe os vizinhos, antes pelo contrário. O resto é circunstância, é folia, carnaval, é a cor garrida dos enfeites e o som estridente do folclore, a Primavera que se prenuncia nas primeiras acácias e também a recompensa, a gratidão para com os agentes do ensino que, outrora, se praticava quase sem remuneração, de tal modo que o mestre ou a mestra possa anafar o seu corpinho para a travessia magra da Quaresma iminente. Ainda hoje se evoca isto, num ambiente festivo que foge à rotina da sala de aula; por vezes foram-se acrescentados outros números, outros matizes à celebração, outras vezes tentou-se regressar ao estado puro das formas. Mas uma coisa parece ser certa: galináceos e estudantinhos estão condenados ao desentendimento até que um dia venha a "raposa" e decida.